Não é mais uma novidade que falar sobre mudanças climáticas extrapola o diálogo sobre o aumento progressivo da temperatura do planeta em consequência da crescente concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera. O colapso climático que vivenciamos hoje é, provavelmente, o problema mais importante da humanidade pois afeta diretamente a economia, a segurança alimentar e hídrica, eleva e intensifica os desastres naturais, a perda de biodiversidade e acentua as desigualdades sociais.
As mudanças climáticas não são um assunto recente. Na década de 1950 as preocupações com o aquecimento do planeta já eram tratadas em revistas especializadas. Duas décadas adiante, em 1970, as mudanças climáticas passaram a ser consideradas nas políticas dando origem a uma série de tratados e protocolos internacionais como a Conferência de Estocolmo (1972), a Eco92 – Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), o Protocolo de Kyoto (1997), a Rio+10 (2002), o Acordo de Paris e a Agenda 2030 (2015), por exemplo.
Entretanto, pouco foi feito até aqui para frear o fenômeno. A temperatura do planeta subiu mais rápido desde 1970 do que em qualquer outro período de 50 anos nos últimos dois milênios. E hoje conhecemos alguns dos efeitos desastrosos do aquecimento recorde da temperatura média global de 1,1 graus Celsius divulgado no novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC – “Climate Change 2021: The Physical Science Basis”, publicado no dia 9 de agosto. Conforme o IPCC, o aquecimento sobre os continentes, onde está assentada nossa estrutura socioeconômica, é ainda maior e já atingiu 1,6 graus Celsius.
“Na história da humanidade, talvez não tenha havido até o momento uma questão tão crítica quanto a da mudança climática. Poucas questões atingem todos os seres vivos em nosso planeta, sem exceção. […] O homem adquiriu uma capacidade que nenhuma espécie até o momento havia adquirido, que é a de alterar a composição da atmosfera.” Paulo Artaxo (2009).
E, mesmo que consigamos cessar as emissões de gases do efeito estufa e alcançar as metas do Acordo de Paris, ainda sim estaremos sujeitos aos impactos dos eventos climáticos extremos que já afetam milhares de pessoas em todo o mundo, entretanto, de maneira desigual.
No caso das cidades brasileiras, a evidente exclusão sócio territorial mantém populações mais vulneráveis à precariedade urbana e, portanto, mais expostas aos severos efeitos da crise climática (Instituto Polis, 2021).
As áreas urbanas abrigam 55% da população mundial e em 2050 esse número deverá aumentar para 68% (ONU News, 2020) o que implicará em desafios climáticos consideráveis para as cidades. 85% da população brasileira vive em cidades que, em sua maioria, herdam o passivo urbano-ambiental do acelerado processo de urbanização marcado pela priorização do carro, acentuada impermeabilização do solo, alteração nas bacias hidrográficas, ocupação de áreas ambientalmente sensíveis, supressão da vegetação e desigualdades sociais. Dessa forma, é urgente que as cidades respondam aos desafios impostos pela crise climática.
“Se as cidades já apresentam altos níveis de vulnerabilidade social, econômica e ambiental, e carências de infraestrutura urbana, a situação somente tende a piorar com o agravamento das mudanças do clima.” Espíndola e Ribeiro (2020 p. 388).
No artigo intitulado, Mudança global do clima e as cidades no Antropoceno: escalas, redes e tecnologia, Mendes (2020) realiza uma revisão sistemática da literatura de como as cidades têm atuado no desenvolvimento de estratégias de mitigação dos impactos climáticos a partir de três concepções integradoras – escalas, redes e tecnologias.
Embora este seja um fenômeno de escala global, em sua robusta investigação Mendes (2020) demonstra que com o agravamento da crise climática as cidades adquiriram significado estratégico na política ambiental global, especialmente nas políticas climáticas.
A importância das cidades na diplomacia transnacional e governança climática pode ser observada a partir de cinco mecanismo, de acordo com o professor Michele Acuto (2013 apud Mendes, 2021 p. 349):
1. Construção de regimes para a ação: como é o caso do World Mayors Council on Climate Change, fundado em 2005 logo após a entrada em vigor do protocolo de Kyoto.
2. Hibridização da governança: através de mecanismos como as parcerias público-privadas, prefeitos têm conduzido atores públicos, privados e do terceiro setor para cooperação.
3. Empreendedorismo diplomático: através de missões e ativismo transnacional, como por exemplo por meio da conformação de redes como ICLEI – Local Governments for Sustainability e C40 – Cities Climate Leadership Group.
4. Mediação normativa: ou seja, crescente capacidade de influência na construção de quadros normativos internacionais.
5. Impacto nas relações internacionais “cotidianas”: capacidade de trazer para o nível local, com pragmatismo e maior capacidade de implantação de políticas públicas, questões de grande relevo no sistema internacional.
Nesse sentido, destaca-se a conformação de redes transacionais pelo potencial que têm de aumentar o poder e a influência dos atores políticos, por não serem entidades isoladas e por terem uma presença global (Bouteligier, 2012 apud Mendes, 2020). No entanto, o engajamento dos prefeitos nessas redes é dificultado pelos esforços e recursos financeiros necessários, já que mesmo em redes como a C-40, considerada uma das mais bem financiadas, 64% das ações climáticas acontecem com orçamentos ou investimentos de cidades-membros (Acuto, 2016 apud Mendes, 2021).
Outro desafio para integração em redes é o nível de globalização de uma cidade. Quanto mais globalizada for uma cidade, mais proativa nas questões ambientais ela será. E nesse aspecto, cabe relembrar as contribuições de Harvey (2008) para o entendimento do direito à cidade e os aspectos predominantes da cidade global – elevada desigualdade socioeconômica, gentrificação dos espaços verdes e especulação imobiliária – que resultam em minorias privilegiadas.
“Esse cenário repleto de obstáculos evidência o conceito de justiça climática. Ou seja a ideia de que nenhum grupo social, seja étnico, racial ou de classe, deve arcar de maneira desproporcional com os efeitos ambientais negativos de operações econômicas, de decisões políticas e de programas federais, estaduais e locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas.” Instituto Polis (2021)
Os desafios da crise do clima envolvem, necessariamente, a transformação radical dos processos de produção dos espaços urbanos para além das disciplinas de arquitetura e urbanismo.
“A transposição do modelo atual para uma cultura de sustentabilidade urbana se torna o maior desafio nas agendas das cidades. Mas que pode ser facilitada pela priorização de abordagens baseadas na natureza e nos ecossistemas.”
Desde que a implementação destas abordagens aconteça em parceria com a comunidade científica, garantindo a avaliação de resultados e adaptações a longo prazo e respeitando a participação dos diferentes atores – governos nacionais e locais, comunidades locais, povos indígenas e culturas originárias, o setor privado, a sociedade civil e as questões de gênero. De modo que os benefícios – financeiros ou outros – resultantes da iniciativa sejam compartilhados equitativamente entre as pessoas da comunidade local da área afetada.
Qual modelo de cidade queremos? Frente à urgência climática, qual é o papel de cada ator, incluindo nós cidadãos?
Concluo este artigo com as palavras do secretário-geral da ONU.
“Quando comunidades urbanas estão envolvidas na formulação de políticas e decisões, e capacitadas com recursos financeiros, os resultados são mais inclusivos e duradouros.” António Guterres (2020).
Referências ARCHDAILY. Soluções baseadas na Natureza: por cidades mais verdes, resilientes e inclusivas. Escrito por Cecília Herzog, Daniela Rizzi e Victor Ferraz. 23 de julho de 2021. ARTAXO, Paulo. Perguntas e respostas sobre aquecimento global. Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM, Belém, 4ª. Edição ampliada, abril, 2009. BRASIL DE FATO. Alagamentos, deslizamentos e enchentes: moradores do Recife sofrem com fortes chuvas. Moradores não aguentam mais perder seus móveis e e eletrodomésticos todos os anos em função das chuvas. Lucila Bezerra. Brasil de Fato | Recife (PE) | 21 de maio de 2021. ESPÍNDOLA, Isabela Battistello e RIBEIRO, Wagner Costa. Cidades e mudanças climáticas: desafios para os planos diretores municipais brasileiros. Cadernos Metrópoles, São Paulo, v. 22, n. 48, pp. 365-395, maio/ago 2020. GUTERRES, António. ONU celebra Dia Mundial das Cidades realçando papel de comunidades contra a Covid-19. ONU News, 31 de outubro de 2020. HARVEY, David. The right to the city. New Left Review, v. 53, pp. 1-16, 2008. INSTITUTO POLIS. Crise climática e direito à cidade. Crise climática: Qual o papel das cidades? @institutopolis, 23 de agosto de 2021. MENDES, Marcos Vinícius Isaias. Mudança global do clima e as cidades no Antropoceno: escalas, redes e tecnologias. Cadernos Metrópoles, São Paulo, v. 22, n. 48, pp. 365-395, maio/ago 2020. OBSERVATÓRIO DO CLIMA. IPCC AR6, WG1: Resumo Comentado. Texto: Claudio Angelo (Observatório do Clima) e José Antonio Marengo (Cemaden). Fonte: IPCC AR6 WG1 Summary for Policymakers Fonte das ilustrações: IPCC AR6 WG1. 2021. ROBERTS, Carter & GLEMAREC Yannick. 3 Rules for Successfully Solving the Climate Crisis. World Economic Forum. July 22, 2021. SAVAGET, Tama e FROTA, Henrique. Crise climática e o direito à cidade. ArchDaily, 20 de setembro de 2019. WRI BRASIL. Como soluções baseadas na natureza podem preparar as cidades para a mudança do clima. 22 de outubro de 2019.
Texto por Maitê Bueno Pinheiro - Comunicadora Social da Phytorestore Brasil. Professora Universitária, Bióloga, Especialista em Química Ambiental e Mestra em Ciências pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).